quarta-feira, 3 de abril de 2019

Narrativa e Trilha Sonora em The Last of Us

Descrição da imagem: Ellie e Joel viajando de carro enquanto Ellie olha pela Janela.

Escrito por Caio H. Amaro

Spoilers Abaixo

Um dos principais motivos para The Last of Us de 2013 ser tão popular e bem avaliado é certamente a forma com que sua história é contada. Para além de um jogo com uma temática genérica de apocalipse zumbi, ele tenta se diferenciar trazendo uma linguagem mais próxima do cinema. Dentre suas inspirações estão: A Estrada (The Road, 2009), Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men, 2007) e Extermínio (28 days later, 2003) em um projeto que começou com a ideia de um jogo que combinasse a jogabilidade ICO (2001), o clima do quadrinho Sin City (1991) e a ambientação de A Noite dos Mortos Vivos (Night of the Living Dead, 1968).
Descrição da imagem: Apresentação do diretor Neil Druckmann no International Game Developers Association de Toronto em 2013 em que ele está em um auditório apresentando uma tela com suas três principais influências para a concepção de The Last Of Us, sendo elas o jogo de Playstation 2 ICO, a história em quadrinhos Sin City e o filme A Noite dos Mortos Vivos.


Sobre Contar Histórias


Há várias formas de uma boa história ser contada. Uma delas é focando nos dilemas dos protagonistas, dilemas esses que são explorados diversas vezes durante a história para que as reações dos personagens demonstrem a sua evolução para aquele que está lendo, assistindo ou jogando.

O medo de altura de Neo em Matrix (The Matrix, 1999) é um exemplo. Primeiro é apresentado Neo, na beirada de um prédio, falhando em seguir as instruções de Morpheus por ter medo de altura. Posteriormente falhando em pular entre edifícios, mesmo em um contexto diferente, já ciente da Matrix e da real possibilidade de tal pulo, para então a cena final do filme mostrar não só um Neo que não tem medo de pular, mas que consegue voar.

Outro filme que demonstra a superação de uma provação é Homem-aranha (Spider-man, 2002). Nele, uma das principais provações de Peter Parker é se declarar para a mulher que ama. Ao longo da jornada ele consegue coragem o suficiente para fazê-lo sem sua máscara de super-herói para esconder sua timidez, porém quando este momento chega nos minutos finais do filme, Peter entende que precisa negar seu sonho de uma vida ao lado da pessoa amada em prol de continuar sendo o homem-aranha. A lição altruísta ensinada pelo seu tio serve como aquilo que vai fazer da sua vida um eterno sacrifício, tornando-o um herói que põe a preocupação pela segurança dos outros acima de suas vontades pessoais.

Voltando a The Last of Us, a história foi organizada mostrando as provações do protagonista Joel. Porém o mesmo não é altruísta e muito menos um herói, então porque essa história pode ser interessante de acompanhar? A resposta está no fato de existirem temas universais que servem como ótimas motivações para humanizar personagens, a exemplo da eterna busca pelo saber/conhecimento; a paixão pela pessoa amada; ou, no caso em questão, a paternidade/maternidade com amor irracional/incondicional. Não é à toa que diversas jurisdições pelo mundo atenuem punições para pais e mães que cometem crimes em razão dos filhos.

Descrição da imagem: Joel abraçando sua filha Sarah após ela morrer no prólogo do jogo.


Desta forma o trauma de Joel é o que gera empatia pela personagem. É o momento principal da história e também a sua provação crucial, que se repetirá várias vezes durante a jogabilidade, a razão dos conflitos mais profundos da narrativa.

Provações e o Fim da Linha


É preciso, logo, ressaltar alguns pontos-chave dessa história, algo que Neil Druckmann (diretor do jogo) fez em uma palestra em 2013 no International Game Developers Association em Toronto. Nela, Neil conta que o projeto mudou muito desde 2004 quando teve a primeira ideia devido aos vários aprendizados que moldaram o que The Last of Us se tornou. Foi um processo como as diversas rejeições recebidas por parte de estúdios, feedbacks femininos da equipe da Naughty Dog sobre conceitos misóginos utilizados e, principalmente, o nascimento de sua filha.

Outro ponto de virada foi a leitura de Story - Substância, Estrutura, Estilo e os princípios da Escrita de Roteiro de Robert Mckee, um trecho em específico lhe fez entender o que faltava para o protótipo evoluir para uma história com uma verdade que a tornasse boa:

"O Protagonista tem a força de vontade e a capacidade de buscar o objeto de seu desejo consciente e/ou inconsciente até o fim da linha, no limite humano estabelecido pelo ambiente e pelo gênero" (MCKEE, 2006, p. 139)


E antes que esse limite humano seja alcançado ao fim do jogo, concluindo os arcos dos protagonistas em uma conversa final, ele precisa ser construído por uma série de provações abordando os laços entre pai e filha. Não existe, no entanto, melhor forma de conectar esses momentos e demonstrar progressão do que usando o recurso que por muitas vezes passa batido em jogos: a trilha sonora.

Criando uma Identidade Sonora


Descrição da imagem: Gustavo Santaolalla, compositor de The Last of Us, tocando um violão.


Durante a produção inicial do jogo, na busca por uma identidade musical minimalista, havia um nome que predominava na lista de referências musicais dos diretores: Gustavo Santaolalla, compositor de cinema premiado e reconhecido pelos filmes O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005) e Babel (2006).

"Uma as melhores coisas sobre trabalhar com Neil e Jonathan (gerente musical) em The Last of Us foi a liberdade que eu tive em trazer coisas que eu considero realmente interessantes. Licença total para tentar e fazer algumas coisas fora do comum que eles amaram, foi uma experiência muito gratificante para mim" (SANTAOLALLA, 2014)

Gustavo, que nunca havia trabalhado com jogos antes, aceitou o trabalho logo após conhecer sua premissa. O compositor também ficou contente por ser contratado nos estágios iniciais do projeto, ponto esse que o diretor Neil Druckmann ressalta como importante, uma vez que, na sua opinião, não só a música foi criada a partir do enredo, como a escrita do mesmo também foi influenciada pelos temas que Gustavo criava.

Descrição da imagem: Joel carregando sua filha Sarah no colo no prólogo do jogo.


Dentre os diversos temas musicais criados por Gustavo para o jogo, o tema mais importante não é a música que leva o título The Last of Us, e sim aquela denominada All Gone, que tem diversas versões ao longo dos dois álbuns oficiais lançados (The Last Of Us de 2013 e The Last of Us - Vol 2 de 2014 com faixas adicionais).



É essa faixa, inclusive, é a que aparece em um dos vídeos de bastidores onde Gustavo Santaolalla mostra a Neil sua adição sonora à cena da morte de Sarah. O tema simboliza esse trauma e é tocada pela primeira vez enquanto ele tenta salvar sua filha em vão.

Após vinte anos Joel muda e se torna um sobrevivente, tanto que, ao ajudar Ellie, seu impulso é evitar que seu trauma volte a ocorrer, assim, passa a ser autoritário com ela e, principalmente, negar qualquer laço paternal. Tal comportamento resulta em uma cena com atuações emocionantes de Troy Baker e Ashley Johnson, onde os dois personagens se abrem como nunca antes.

Na discussão, Ellie argumenta que sabe se cuidar e tomar suas próprias decisões e que todas as pessoas a quem ela já se apegou se foram, expondo que também tem traumas (algo melhor desenvolvido na DLC The Last of Us: Left Behind) e o principal deles é justamente o medo de ficar sozinha. Por outro lado, Joel se zanga ao lembrar de Sarah e alega que Ellie definitivamente não é sua filha, mas essa mentira que ele conta a si mesmo é desmascarada pelo retorno da faixa All Gone que toca durante a discussão.

Descrição da imagem: Joel acariciando Ellie manchada de sangue após ela matar David.


No início do capítulo do inverno é possível ouvir All Gone (Alone) enquanto Ellie cuida de Joel ferido, porém o próximo uso essencial da trilha ocorre quando Joel é obrigado a reviver seu trauma e é posto novamente em uma situação de estresse onde a pessoa com quem ele mais se importa está a mercê de indivíduos perigosos e o medo da sua eventual perda o faz buscá-la desesperadamente. Mas, diferente de Sarah, Ellie não é indefesa, além de forte, ela prova que sabe tomar suas próprias decisões, mesmo que no momento da cinemática, após matar David, ela esteja sob tensão e necessitando justamente da pessoa que Joel tanto negava ser.

É nessa cena que Joel assume Ellie como sua filha, o que também é entregue em formato de música, uma vez que o tema traumático retorna com o nome de All Gone (Reunion) e traz uma das melhores particularidades que Gustavo Santaolalla adiciona a trilha: a inclusão de barulhos. Conforme o que o mesmo relata, sua intenção não era só fazer músicas melódicas para o jogo, mas também captar os barulhos e as texturas dos instrumentos, tanto que algumas captações sonoras foram feitas em quartos, cozinhas e banheiros.

All Gone (Reunion) inicia diferente, engasgada, como se a melodia tivesse dificuldade para iniciar. Enquanto Joel tenta acalmar Ellie, o compositor dedilha as notas rapidamente e só entrega o tema quando o protagonista assume sua condição de pai e usa o termo “Baby Girl” (mesma forma que chamava Sarah).

Logo não é mais possível ouvir o diálogo dos dois porque a melodia cresce e, junto dela, a relação daqueles dois personagens.



Com essa relação solidificada, o jogo se encaminha para o ato final, onde, sob novas condições, Joel reviverá novamente seu trauma, porém agora de forma mais integrada com a jogabilidade, pois, junto dele, o jogador também não saberá o real estado de Ellie. A situação inicia de forma similar, com Ellie afogada, Joel tentando reanimá-la e um indivíduo armado os ameaçando. A partir daí, está nas mãos do jogador percorrer todo o cenário do hospital em busca da garota e, inclusive, assassinar os médicos responsáveis por sua cirurgia. Curiosamente, esse momento crucial de jogabilidade foi uma adição defendida pelo Designer de Nível Peter Field ao perceber que o diretor Neil havia gravado uma cena com atores para este trecho. O argumento de Peter era que, uma vez que o conflito estava tão bem construído, os sentimentos transmitidos ao jogador o fariam agir da mesma forma que o protagonista.

Descrição da imagem: Joel aflito carregando Ellie desacordada no colo enquanto está no elevador do Hospital.


Após vários minutos de tensão, Joel carrega Ellie da mesma forma que carregava Sarah, fugindo dos vaga-lumes armados e obtém o sucesso que nunca teve em salvar sua filha. O tema ganha uma nova versão mais envolvente e com adição de um novo arranjo, simbolizando o fim daquele conflito.



Joel havia enfim tomado sua decisão, que é reafirmada pela última cena do jogo onde ambos os personagens cruzam o Fim da Linha em consonância com o que Robert Mckee ensinou ao diretor Neil Druckmann, que explica que a mentira de Joel sobre a cura significa que ele decide arriscar a coisa mais preciosa do mundo para ele, o relacionamento com sua própria filha, devido ao seu amor irracional de pai, enquanto Ellie ao dizer "Okay" sabe que ele está mentindo, o ama pelo que ele fez por ela e o odeia por tirar seu poder de decisão sobre suas escolhas, percebendo neste momento que precisará deixá-lo e encarar seu medo de ficar sozinha no mundo, mas dessa vez por opção própria.

Descrição da imagem: Ellie olhando para Joel na cena final do jogo.


Desta forma, o tema All Gone não se encaixa mais, logo Gustavo Santaolalla cria um novo, encerrando a narrativa com uma faixa com um nome que simboliza tudo que o último momento propõe: The Path (A New Beginning).



Trilha das História


Inegavelmente, The Last of Us, por ser um jogo, é um produto que traz discussões sobre arte. Ele está inserido em um contexto de uma indústria que estimula o consumo, cria às pressas e explora funcionários (principalmente a própria Naughty Dog), ao mesmo tempo que proporciona novas formas de criação, com o jogador não sendo apenas um receptador de informação, mas capaz de interagir e se emocionar com o resultado do trabalho de milhares de profissionais.

Nesse sentido, a preocupação em conciliar narrativa e trilha sonora é um dos diferenciais que proporciona uma forma agradável de se contar uma história e de transmitir suas mensagens. Não é à toa que Gustavo Santolalla além de ser responsável pela trilha de The Last of Us - Part II (2020), também irá compor para a futura série da HBO sobre o jogo. Assim como Neil disse, sua música é parte da história, assim como The Last of Us é fruto de sua música.

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